Quando nasci, minha mãe me deu o nome da minha bisavó,
figura feminina da qual todos se orgulhavam.
Mãe, avó e esposa exemplar, bisa Eliza levou um casamento até o fim, como manda
os bons costumes do matrimônio “perfeito”: ‘Até que a morte os separou’. Sofreu
ameaças, agressões e gritos de um marido agressivo e alcoólatra. Mas, “como deve ser”, nunca cogitou uma
separação.
Doce, bondosa, religiosa, mãe de oito filhos. Assim era a mulher que inspirou
meu nome.
Já nos primeiros dias de vida, ganhei pulseira de ouro e um
par de brincos. Coisa de menina.
Antes mesmo de aprender a falar, já tinha dezenas de bonecas.
Minha mãe gostava de fotografar cada passo meu, e, para isso, contratava um
fotógrafo profissional. Trocas de roupa, penteados e vários batons a cada foto.
Tive coleção de Bonecas Barbie, milhares de roupinha,
sapatinhos, bijuterias... Tive todas as
coisas de menina.
Minha avó me proibiu de brincar na rua o quanto pode. Porque
isso não era coisa de menina.
Menina tinha que brincar em casa. Com as amiguinhas. De casinha, comidinha,
mamãe e filhinha!
E assim foi. Até meus onze anos.
Foi aos onze que descobri a rua. Foi aos onze que descobri
que além das panelinhas, havia um mundo de brincadeiras e diversão!
Foi quando descobri as trilhas de bicicleta, os inúmeros ‘piques’, o jogo de
Taco, bolinha de gude e o rolimã.
Foi quando percebi que eu era flamenguista e o que isso de fato significava.
Foi quando eu descobri o que era um pênalti e um gol olímpico.
Anos depois, grávida, vi minha vida se encaminhar sem que eu me desse conta.
Perdi as rédeas e as coisas aconteceram, simplesmente.
Montei casa, me mudei e voltei a brincar de casinha!
Uma brincadeira que me sufocava a cada dia.
Daquelas que dá vontade de guardar tudo numa caixa e não brincar nunca
mais. Deixar lá no alto do guarda-roupa, até mofar e ir pro lixo.
Não durou muito. Não havia como durar.
Levou tempo, mas hoje entendo com perfeição. Eu não cabia
naquele lugar, naquela vida. Aquela brincadeira já não me servia mais. Eu
queria as trilhas e o rolimã!
Separei.
Queria trabalhar em
algo que pudesse fazer diferença na vida das pessoas. Estudei, me formei.
Hoje, sou Pedagoga, com dois empregos públicos, e mãe do
Arthur, com oito anos.
Nenhum marido.
Não lavo, não passo, não cozinho, não limpo!
Sou um desastre para encontrar coisas, e um maior ainda para manter arrumações.
Esqueço roupa no chão do banheiro, toalha molhada em cima da cama, sapato no
meio do caminho! Tomo iniciativa em
relacionamentos, pago a conta, pego o telefone, no fim da noite, sou eu quem
vou pra casa!
Minha avó tem Alzheimer avançado. Quase não reconhece
ninguém. Mas, ao me ver, sempre pergunta: “Quando você vai casar?” Disso não se esquece...
Lido com olhares de lamento de amigas, que torcem para que
eu me case,trabalhe menos, tenha mais filhos...
Hoje sei que posso me casar sim, mas que isso não implica em
voltar a brincar de casinha. A certeza de que não preciso mais das panelinhas,
me traz leveza.
De minha bisa, apenas o nome. Dos ensinamentos da infância, a certeza que posso
ser o que eu quiser.
Entre bonecas e rolimãs, futebol e novela, sigo sendo o que sou, sem
necessidade de aceitação externa e com a certeza que nada disso me faz menos ‘menina’. Pois sei que coisa de menina é tudo aquilo que ela quiser!